Dicendi

05/03/09

O RETRATO

Enquanto olhava pelos vidros da janela do meu quarto, verifiquei que algo estava diferente nesse dia, o verde das árvores pintava o horizonte de uma forma deslumbrante, a estrada em terra barrenta que o atravessava desenhava um traço, numa beleza inconfundível.

Lembrei-me que tinha tudo ali, bem à minha frente, para poder fazer uma coisa que há muito estava guardada, à espera daquele momento. Pintar. Puxei o cavalete, instalei a tela e misturei as cores. De repente um pássaro negro pousou na soleira da janela, ficou ali, estático, durante uns minutos, observando atentamente todos os meus movimentos. Enquanto esboçava os primeiros traços lembrei-me da última vez que o tinha feito, e tinha sido há tanto tempo. Nessa altura, no bosque que agora me entrava pela janela, enquanto eu estava sentado num banco, que ainda existe, passou uma mulher, esbelta e com um olhar tão profundo que me deixou preso às ripas verdes do banco. Sentou-se em frente a mim, junto ao bebedouro, de água tão cristalina e aveludada… como ela. Perguntou-me, docemente, se eu não a podia pintar, fazer-lhe um retrato. Acedi imediatamente, afinal não era todos os dias que me deparava com alguém assim… aquele olhar. Vou descrever-vos o desenho. Pintei o fundo a verde, um verde forte. Aos seus cabelos negros dei-lhe liberdade, soltos ao vento, ao seu rosto exótico atribui-lhe uma cor pálida, onde os lábios vermelhos contrastavam com o castanho dos olhos. Pedi-lhe que deixasse descair o manto, queria que os seus seios ficassem retratados, não fazia sentido escondê-los, se bonitos eram…. E eram. Demorei três horas, até que terminasse. Quando lhe entreguei a pintura, abraçou-me fortemente, beijou-me e disse-me que nunca ninguém lhe tinha feito um gesto daqueles… um retrato. Senti-me orgulhoso, não pelo desenho, mas por ela, pela sua humildade… pelo seu toque místico. Dirigi-me ao bebedouro, bebi dois tragos de água e, quando me virei reparei que estava sozinho. Olhei para o chão e lá estava um manto, negro… apenas. Nem tive tempo de me despedir dela. Até hoje, nunca mais a vi, mas a sua imagem ficou-me gravada. Nunca esqueço um quadro que pinto. E hoje, ao abrir a janela, vendo o mesmo bosque, de um verde-escuro e os mesmos bancos reportei-me àquele dia de uma forma nostálgica, sentida. Apenas o pássaro negro permanece na soleira da minha janela, como se me quisesse pedir para o pintar, mas que por medo de ter que se ir embora, eu não tivesse oportunidade de me despedir dele. E assim foi. Não pediu, mas eu pintei-o na mesma. Partiu… voou em direcção às árvores, deixando-me uma pena… preta.
posted by Henrique at 15:56

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